segunda-feira, 1 de julho de 2024

O Grande Teatro Boliviano ou Todos estão “Jodidos”

 JCO

Inicio o texto dessa semana com o poema do escritor Primo Levi intitulado “Para Adolf Eichmann”, o carrasco nazista que foi preso na Argentina em 1960 e foi levado a julgamento:

“... E você chegou, nosso precioso inimigo,/ Você, criatura deserta, homem cercado de morte./ O que saberá dizer agora, diante de nossa assembleia? /Jurará por um deus? Mas que deus?/ Saltará contente sobre o túmulo?/ Ou se lamentará, como o homem operoso por fim se lamenta,/ A quem a vida foi breve para tão longa arte,/ De sua terrível arte incompleta,/ Dos treze milhões que ainda vivem”?

O escritor Robson Camargo no texto “O Espetáculo do Melodrama” define “Teatro” como "lugar aonde se vai para ver" e “onde, simultaneamente, acontece o drama como seu complemento visto, real e imaginário. Assim, o representado no palco é imaginado de outras formas pela plateia. Toda reflexão que tenha o drama como objeto precisa se apoiar numa tríade teatral: “quem vê”, “o que se vê”, “e o imaginado”.

Nesse espaço tudo pode ter mais de um sentido.

Afirmam os historiadores que a Bolívia é um picadeiro que em mais de 200 anos de historia já teve 194 tentativas de golpes. É um palco onde os espectadores de todo mundo, espantados, observam o desenrolar do próximo enredo ou do próximo golpe.  Como um moto-continuo eterno violando todas as Leis da Termodinâmica, os atores que desempenham os papeis no Palco Boliviano se revezam todos os anos, desde a Independência, para os espectadores do país e do mundo, apoiando-se na primeira tríade do Teatro: “quem vê”.

Assim, nessa quarta-feira (26), uma nova-velha peça foi encenada: mais uma tentativa de golpe de Estado.

O personagem principal, general Juan José Zuñiga, que no dia anterior tinha sido afastado do cargo de comandante do Exército após fazer ameaças ao ex-presidente Evo Morales - ele afirmou que prenderia Morales caso o ex-presidente volte ao poder.

Pela trama que se desenrolou aos olhos dos espectadores, Evo Morales, o cocaleiro que implantou o socialismo no país, quer voltar ao poder de qualquer jeito e isso deixou o General irritado.

Juan José Zuñiga, o General abespinhado e defensor da democracia, cercou a Praça Murillo no centro de La Paz, onde fica a sede do Executivo, o Palácio Quemado, e o Congresso com tropas e blindados.

A intenção era prender todos e tomar o poder. Segundo o General, dessa forma ele estaria defendendo e preservando a democracia. Armou-se uma tremenda confusão, quase igual aos sambas de Zeca Pagodinho.

Zuñiga entrou no Palácio e deu de cara com o presidente Luis Arce Catacora. Amigavelmente os dois bateram um papo e a partir daí tudo voltou ao normal.

Nem o Presidente foi preso e destituído, nem o golpe aconteceu.  Zuñiga, estranhamente, deu meia-volta com seus homens e blindados camuflados e foi embora.

Mais tarde o Presidente Arce Catacora apareceu na televisão afirmando que “deu um pito no General” e por tabela substituiu todos os ministros militares.

A plateia boliviana e mundial nada entendeu.

Mais tarde o Presidente mandou prender o General e disse que ele havia arquitetado um golpe de estado.

- “O que vimos hoje na Bolívia foi um episódio embaraçoso que mostra a decadência do governo liderado pelo Movimento ao Socialismo, MAS, que pretendeu fazer um show midiático com um suposto autogolpe, com características ridículas“, diz o cientista político boliviano Santiago Terceros, que vive em Santa Cruz de la Sierra.
- “Um golpe de Estado implica a tomada de poder, nesse caso, por parte do Exército. Mas nunca na história se viu o presidente que está para ser derrotado conversar na porta do palácio presidencial com aquele que pretende derrubá-lo“, diz Terceros.

Antes de seguir para prisão o General deu uma entrevista aos meios de comunicação e admitiu que “tudo não passou de uma encenação”:

- “Vou falar em detalhes. No domingo, na escola La Salle, encontrei-me com o presidente (Luis Arce Catacora) e ele me disse que a situação estava muito jodida” (fodida) e que esta semana seria crítica. ‘Então, é necessário preparar algo para aumentar minha popularidade’, ele me disse. ‘Devemos retirar os veículos blindados?’ perguntei a ele. ‘Tire os blindados’, disse o presidente. E a partir do domingo, os veículos blindados começaram a descer: seis Cascavéis e seis Urutus. Mais catorze Zetas do regimento de Achacachi”, disse Zuñiga, em uma entrevista que foi registrada em vídeo. (Revista Crusoé - “General boliviano admite encenação a mando do presidente”).

E Levaram o General para cadeia. Agora o Presidente Arce afirma que o General está mentindo, que existem dezenas de conspiradores que serão presos.

Essa foi a segunda Tríade do Teatro: “o que se vê”.

Nesse lugar cheio de ambiguidades surge a terceira tríade: “o imaginado”.

O público, surpreso com o desenrolar dos acontecimentos tenta descobrir qual é a verdade nestes acontecimentos e imagina que ninguém leva tanques e soldados armados até os dentes, cerca e invade um palácio, encontra o Presidente, sem nenhum soldado ou segurança para lhe proteger, sem nenhuma arma, e o Presidente com o dedo em riste dá uma tremenda reprimenda no General e o manda de volta, depois manda prendê-lo.

O Presidente Arce deve ser um super-homem.

Então o General apreendido afirma que tudo não passou de uma encenação. E nossa imaginação vai mais longe, pois o Presidente jura que o General mente.  Mas, se o General mente, por que ele levou tanques e soldados armados para dar um golpe? Se ele não havia combinado antes com o Presidente, por que faria isto?

E vai mais longe nossa imaginação nessa Terceira Tríade Teatral. O Presidente, astuciosamente, armou a cena para dois desfechos e manipulou o General. O fato é que não haveria golpe, mas tão somente a “autoridade” do Presidente Arce que desarmado e sozinho debelou o golpe que não aconteceria, tanto é que o General deu meia-volta e foi embora.

Ora, o Presidente então mudou os planos: mandou prender o General, pois viu nesse ato um ganho maior. Quando o General viu que a prisão era verdadeira, abriu o bico. Mas aí já era tarde, qualquer versão dada para o acontecimento encurrala o General como golpista e deixa o Presidente livre para prender todos os que participaram do Grande Teatro Boliviano e divulgar qualquer versão do ato que lhe interessa e ainda receber solidariedade de todos os presidentes dos países onde predomina a democracia, posando de herói.

Toda essa encenação lembra o Grande Expurgo de Stalin na antiga União Soviética, episódio de perseguição sob o pretexto de atividades contrarrevolucionarias, que atingiu 13 dos 15 generais de três estrelas, oito de nove almirantes e 154 dos 186 comandantes de divisão — às vésperas da Segunda Guerra, as forças armadas do país ficaram acéfalas. Os acusados eram amigos de Stalin, mas o Ditador precisava do comando total.

Essa ostentação de poder de Arce, lembrando Stalin, é típica do ditador que almeja permanecer eternamente no poder. Com um detalhe: todos são adeptos da ideologia comuna/socialista que já matou mais de 100 milhões de pessoas nos lugares onde foi instalada e em 2006, através do índio cocaleiro Morales, cravou as garras no coração da pobre Bolívia e lá ficou como o corvo de Poe, grasnando:

- “Nunca mais”.

Os “comunas” necessitam sempre de representação teatral para se manter no governo. Não interessa se é por mentiras ou por traições, é necessário apenas encontrar militares corruptos, generais gananciosos, civis sem-vergonha, jornalistas vendidos, imprensa amiga e a cena Teatral é montada.

O final é sempre “jodido”.

E assim termina o poema “Para Adolf Eichmann”:

-“ Ó filho da morte, não lhe desejamos a morte./ Que você viva tanto quanto ninguém nunca viveu: / Que viva insone cinco milhões de noites, / E que toda noite lhe visite a dor de cada um que viu/ Encerrar-se a porta que barrou o caminho de volta,/ O breu crescer em torno de si, o ar carregar-se de morte”.

Bom final de semana a todos.

Foto de Carlos Sampaio

Carlos Sampaio

Professor. Pós-graduação em “Língua Portuguesa com Ênfase em Produção Textual”. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

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