segunda-feira, 5 de agosto de 2024

A inveja como traço inconfundível

JCO



Não sou leviano, tampouco descortês a ponto de escrachar alguém que não conheço. O que me resta fazer, como jornalista, é analisar os dados da realidade e apontar as influências intelectuais de determinados indivíduos e eventos que nos trouxeram até aqui – já é muita coisa num país de cegos convictos. Porém, posso afirmar com certeza quase pontifícia que o sr. Dunker padece da inveja típica da nossa classe falante, fechada em si mesmo ao ser incapaz de encarar um verdadeiro confronto de ideias. O que resta? Caricaturar o divergente com a estupidez típica do ad hominem.

Tal subterfúgio não é exclusividade das esquerdas. A inveja tipicamente tupiniquim é mais antiga e constitui uma triste marca registrada do nosso país. Os exemplos são abundantes, mas fico com dois: José Bonifácio e Carlos Lacerda. Ambos foram grandes homens públicos e estadistas, mas cometeram o pecado mortal de estarem acima da mediocridade dos seus detratores.

José Bonifácio foi provavelmente o maior brasileiro que já tivemos, o Patriarca da Independência, o nosso Pai Fundador. Homem de ideias e grandes projetos, tornou o Brasil uma nação viável graças a sua sabedoria ao lidar com os encolerizados liberais da Revolução do Porto e o desejo de recolonizar uma terra que já havia suplantado a pátria-mãe. Ao ser testemunha ocular dos horrores da Revolução Francesa, criou uma genuína ojeriza à anarquia, preferindo a prudência das soluções conciliadoras propaladas pelo conservadorismo – embora não fosse passivo ao lidar com rupturas inevitáveis como o próprio grito do Ipiranga. Em suma, um personagem ímpar e muito acima da mediocridade do meio de então.

Como não poderia deixar de ser, Bonifácio angariou a antipatia de muitos. Os liberais brasileiros e portugueses – por motivos diferentes, é claro – estão entre os principais inimigos dele e dos Andradas. Homens como Diogo Antônio Feijó, Joaquim Gonçalves Ledo, Cônego Januário e tutti quanti enxergavam no Patriarca uma oposição aos ideais liberais e o desejo pela República num país de escravos e majoritariamente composto por analfabetos – não haveria ambiente mais impróprio para tal forma de governo. Além da defesa da extinção de tal prática nefasta e das devassas contra o grupo de Gonçalves Ledo, a superioridade intelectual e a preponderância de Bonifácio no governo comandado por Dom Pedro I despertaram inveja, intrigas e ressentimentos nos demais atores políticos da época.

Valendo-se da influência de Domitila de Castro – amante de Dom Pedro – sobre o imperador, os demagogos tupiniquins jogaram o Rei Soldado contra o seu mentor. O primeiro ato foi o exílio na França. O segundo – e definitivo – foi o seu afastamento como tutor de Dom Pedro II enquanto ele era criança. O homem que havia feito tanto pela terra que amava foi jogado no porão do esquecimento por gerações, sendo recordado apenas recentemente – bem como difamado por um livro ridículo que o pinta como interesseiro e medíocre igual a quem escreveu tal obra digna de outro significado dessa palavra.

O que dizer de Carlos Lacerda? Ele é simplesmente uma das minhas maiores inspirações no jornalismo. Além de jornalista, Lacerda foi político, intelectual e um dos personagens mais importantes da vida pública brasileira no século XX. Defensor das ideias liberais, do anticomunismo e da modernização do Estado brasileiro, foi uma luz num dos períodos mais obscuros da história humana – a época dos totalitarismos sanguinários – e também tupiniquim. Opositor ferrenho de Getúlio Vargas, enfrentou com dignidade e senso de dever o caudilho de São Borja, pagando por isso o preço da eterna antipatia das esquerdas e quase a própria vida no atentado da Rua Tonelero. Seus detratores utilizam os subterfúgios clássicos da extrema esquerda: golpista, vendido ao imperialismo, mentiroso, etc. Até mesmo inventaram que ele forjou o próprio atentado – essa não é nova, meus caros – e que enquanto governador do finado estado Guanabara era um ‘’matador de mendigos’’. Patético e deprimente.

Que as esquerdas sempre o difamaram, isso está fora de qualquer dúvida. Mas a inveja feroz contra Lacerda veio de uma ala política aparentemente inesperada: os militares partícipes dos acontecimentos de 1964 e do regime emergido das cinzas de uma República em frangalhos. A ‘’linha-dura’’, liderada pelo marechal Costa e Silva, não via com bons olhos a eleição em 1965 e a consequente devolução do poder aos civis por compreender que a ‘’revolução’’ demandava tempo para ser consolidada. Ora, Lacerda era a maior liderança política de então e despontava como favorito para vencer a eleição presidencial. Mas a vitória da linha-dura na extensão do mandato inicialmente interino do general Castelo Branco impediu o ilustre tribuno de chegar ao seu grande objetivo. Criou a Frente Ampla – composta por antigos adversários políticos – na tentativa de reestabelecer a democracia no país, mas não obteve sucesso. Faleceu em 1977, sem ver o fim da ditadura militar e com seus direitos políticos cassados pelos homens de farda, os mesmos que o prenderam em 1968.

Além da nítida inveja dos militares com a popularidade de Lacerda, a própria classe política época compartilhava tal sentimento. É a conclusão inequívoca que se pode chegar com o livro ‘’Lacerda: A Virtude da Polêmica’’, de Lucas Berlanza. Com a palavra, o autor: ‘’[...] ainda que não fosse por desejo de Castelo, a prorrogação de seu mandato resultava em boa medida de uma manobra dos congressistas [...] para pôr freio à candidatura lacerdista à presidência, que temiam ser, ela sim, o caminho para ditadura, porque, conforme Arinos admitiu, Lacerda era competente e extraordinário orador e, portanto, se assumisse a presidência em um ‘período revolucionário’, não sairia de lá [...]’’.

Eis o traço inconfundível do nosso país: a inveja. Como diria Tom Jobim, no Brasil o sucesso é uma ofensa pessoal. Até mesmo os indivíduos com carreiras estabelecidas e situações pecuniárias vantajosas invejam os que são superiores. A superioridade no intelecto e de espírito é a maior e mais valiosa, por isso mesmo a inveja a tais predicados é a mais enragé possível. Como tantos outros, José Bonifácio e Carlos Lacerda foram vítimas de tal fúria típica dos medíocres.

Foto de Carlos Júnior

Carlos Júnior

Jornalista

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