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A recente revelação de um plano por supostos aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro, envolvendo o sequestro e possível execução de figuras públicas como o ministro Alexandre de Moraes, o presidente Lula e o vice-presidente Geraldo Alckmin, trouxe à tona acusações sem pé nem cabeça. Embora os detalhes da trama sejam alarmantes, a forma como Moraes conduziu o caso suscita questionamentos críticos sobre os limites da atuação judicial e a proteção das garantias constitucionais.
A decisão de 74 páginas, divulgada pelo ministro, apresenta um enredo que lembra um thriller político: reuniões conspiratórias, mensagens interceptadas entre generais e um plano que nunca foi adiante. No entanto, a análise jurídica das medidas adotadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) aponta irregularidades preocupantes.
É consenso jurídico que a imparcialidade é essencial no sistema de Justiça. Sendo Alexandre de Moraes uma das vítimas diretas do suposto plano, sua atuação à frente das investigações compromete o princípio da neutralidade. A jurisprudência brasileira sustenta que, em casos semelhantes, o magistrado deve se declarar impedido, permitindo que um juiz natural assuma o caso.
Além disso, a ausência de investigados com foro privilegiado levanta questionamentos sobre a competência do STF para julgar o caso. Por que o processo não foi remetido à primeira instância? O desrespeito a esse rito cria um precedente perigoso para a instrumentalização política do Judiciário.
O procurador de Justiça e doutor em Direito Rodrigo Chemim destaca que “a imparcialidade do juiz é indispensável em qualquer sistema jurídico que se pretenda justo”. Segundo ele, o fato de Alexandre de Moraes ser uma vítima direta compromete significativamente a legitimidade das decisões tomadas.
Outro ponto crítico é a decretação de prisões preventivas dos investigados, com fundamentações que parecem frágeis. A jurisprudência exige que a privação de liberdade se baseie em risco contemporâneo à decisão, mas os fatos ocorreram há dois anos. Desde então, não há registros de novos episódios envolvendo os acusados que justifiquem a manutenção das prisões como medidas necessárias e proporcionais.
Decisões de instâncias inferiores, baseadas em fundamentos tão frágeis, seriam rapidamente revertidas por habeas corpus, mas no STF o rigor parece ser flexibilizado.
Chemim observa que “a prisão preventiva deve ser embasada de forma concreta, atendendo às exigências legais, como o risco efetivo e atual à ordem pública. Caso contrário, seria uma antecipação de pena, incompatível com o Estado Democrático de Direito”.
A decisão de Moraes lista uma série de crimes supostamente cometidos pelos envolvidos, incluindo tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e organização criminosa. Contudo, a análise jurídica das acusações levanta dúvidas sobre a coerência e a adequação das tipificações.
Por exemplo, o crime de “peculato de uso” mencionado na decisão não encontra respaldo no Código Penal, sendo restrito a prefeitos segundo o Decreto-Lei 201/67. Além disso, a coexistência das acusações de associação criminosa e organização criminosa ignora a regra de exclusão entre esses tipos penais.
A acusação de tentativa de golpe de Estado também enfrenta objeções jurídicas. Mesmo com atos preparatórios documentados, como a elaboração de minutas e reuniões conspiratórias, não houve início de execução do plano, nem violência ou grave ameaça pública. A desistência voluntária dos envolvidos enfraquece a tese de tentativa consumada, conforme mensagens transcritas na própria decisão.
O caso ilustra a complexa interseção entre Justiça e política no Brasil. O ativismo judicial, muitas vezes exaltado como um mecanismo de defesa da democracia, se torna um risco quando ultrapassa os limites das garantias constitucionais.
Para Chemim, “o Judiciário não pode ser utilizado como instrumento de disputa política. O combate à criminalidade deve ser feito com rigor, mas respeitando as garantias processuais. Caso contrário, a legitimidade do sistema de Justiça é comprometida”.
Ignorando princípios como a imparcialidade, o juiz natural e a proporcionalidade nas decisões, o STF reforça a percepção de que resultados já estão predeterminados. Isso enfraquece a legitimidade das decisões e aumenta a polarização política e a desconfiança nas instituições.
Os fatos revelados pela decisão são graves e merecem uma investigação rigorosa e imparcial. No entanto, o país não pode sacrificar o Estado de Direito em nome de uma Justiça seletiva e politizada. Sem respeito às garantias fundamentais, as instituições perdem credibilidade, e os brasileiros, independentemente de suas posições políticas, são prejudicados. Como alerta Rodrigo Chemim, “a Justiça deve ser sempre imparcial e guiada pela Constituição, nunca por paixões ou interesses momentâneos”. O combate à ameaça contra a democracia deve ser feito com ferramentas democráticas, não à sua custa.
Além disso, o caso expõe distorções no entendimento jurídico sobre os fundamentos do iter criminis. As fases de um crime — da ideação à consumação — parecem ter sido modificadas, com conceitos adaptados para justificar medidas questionáveis.
O sistema acusatório, que prevê a clara divisão entre investigação, acusação, julgamento e a imparcialidade do juiz, foi completamente desrespeitado e descaracterizado. A lógica investigativa, que deveria partir da materialidade para a autoria, foi invertida, começando com a escolha de alvos, a necessidade de imputação e a posterior “produção” de provas.
Princípios como juiz natural, competência, legalidade e devido processo foram relativizados, evidenciando uma prática processual que se tornou comum no Brasil atual. Não se tratam de eventos isolados: narrativas vêm sendo transformadas em fatos para justificar medidas extremas.
Casos como a prisão descabida de Filipe Martins, embasada por um relatório vergonhoso, são exemplos de atropelos graves à ordem e à legalidade. Excessos e perseguições estão mais que evidentes. Não se pode mais esperar que apenas a história julgue; a sociedade precisa reagir.
Isso também se aplica a inquéritos conduzidos pela Polícia Federal, que muitas vezes refletem esse padrão. No Brasil atual, o Estado de Direito parece ter perdido tanto o “Estado” quanto o “Direito”.
Carlos Arouck
Policial federal. É formado em Direito e Administração de Empresas.
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