Li recentemente uma matéria do portal Terra na qual o sr. Christian Dunker – a quem eu desconhecia completamente até então – falava um pouco dos livros presentes em sua biblioteca. Até aí, nada demais. Mas, ao falar de Olavo de Carvalho, os adjetivos negativos afloraram, principalmente no comentário acerca do livro ‘’O Imbecil Coletivo’’, que, nas palavras do próprio Dunker, “[...] começa muito bem, até me surpreendeu, mas depois degringola completamente”.
Não sou leviano, tampouco descortês a ponto de escrachar alguém que não conheço. O que me resta fazer, como jornalista, é analisar os dados da realidade e apontar as influências intelectuais de determinados indivíduos e eventos que nos trouxeram até aqui – já é muita coisa num país de cegos convictos. Porém, posso afirmar com certeza quase pontifícia que o sr. Dunker padece da inveja típica da nossa classe falante, fechada em si mesmo ao ser incapaz de encarar um verdadeiro confronto de ideias. O que resta? Caricaturar o divergente com a estupidez típica do ad hominem.
Tal subterfúgio não é exclusividade das esquerdas. A inveja tipicamente tupiniquim é mais antiga e constitui uma triste marca registrada do nosso país. Os exemplos são abundantes, mas fico com dois: José Bonifácio e Carlos Lacerda. Ambos foram grandes homens públicos e estadistas, mas cometeram o pecado mortal de estarem acima da mediocridade dos seus detratores.
José Bonifácio foi provavelmente o maior brasileiro que já tivemos, o Patriarca da Independência, o nosso Pai Fundador. Homem de ideias e grandes projetos, tornou o Brasil uma nação viável graças a sua sabedoria ao lidar com os encolerizados liberais da Revolução do Porto e o desejo de recolonizar uma terra que já havia suplantado a pátria-mãe. Ao ser testemunha ocular dos horrores da Revolução Francesa, criou uma genuína ojeriza à anarquia, preferindo a prudência das soluções conciliadoras propaladas pelo conservadorismo – embora não fosse passivo ao lidar com rupturas inevitáveis como o próprio grito do Ipiranga. Em suma, um personagem ímpar e muito acima da mediocridade do meio de então.
Como não poderia deixar de ser, Bonifácio angariou a antipatia de muitos. Os liberais brasileiros e portugueses – por motivos diferentes, é claro – estão entre os principais inimigos dele e dos Andradas. Homens como Diogo Antônio Feijó, Joaquim Gonçalves Ledo, Cônego Januário e tutti quanti enxergavam no Patriarca uma oposição aos ideais liberais e o desejo pela República num país de escravos e majoritariamente composto por analfabetos – não haveria ambiente mais impróprio para tal forma de governo. Além da defesa da extinção de tal prática nefasta e das devassas contra o grupo de Gonçalves Ledo, a superioridade intelectual e a preponderância de Bonifácio no governo comandado por Dom Pedro I despertaram inveja, intrigas e ressentimentos nos demais atores políticos da época.
Valendo-se da influência de Domitila de Castro – amante de Dom Pedro – sobre o imperador, os demagogos tupiniquins jogaram o Rei Soldado contra o seu mentor. O primeiro ato foi o exílio na França. O segundo – e definitivo – foi o seu afastamento como tutor de Dom Pedro II enquanto ele era criança. O homem que havia feito tanto pela terra que amava foi jogado no porão do esquecimento por gerações, sendo recordado apenas recentemente – bem como difamado por um livro ridículo que o pinta como interesseiro e medíocre igual a quem escreveu tal obra digna de outro significado dessa palavra.
O que dizer de Carlos Lacerda? Ele é simplesmente uma das minhas maiores inspirações no jornalismo. Além de jornalista, Lacerda foi político, intelectual e um dos personagens mais importantes da vida pública brasileira no século XX. Defensor das ideias liberais, do anticomunismo e da modernização do Estado brasileiro, foi uma luz num dos períodos mais obscuros da história humana – a época dos totalitarismos sanguinários – e também tupiniquim. Opositor ferrenho de Getúlio Vargas, enfrentou com dignidade e senso de dever o caudilho de São Borja, pagando por isso o preço da eterna antipatia das esquerdas e quase a própria vida no atentado da Rua Tonelero. Seus detratores utilizam os subterfúgios clássicos da extrema esquerda: golpista, vendido ao imperialismo, mentiroso, etc. Até mesmo inventaram que ele forjou o próprio atentado – essa não é nova, meus caros – e que enquanto governador do finado estado Guanabara era um ‘’matador de mendigos’’. Patético e deprimente.
Que as esquerdas sempre o difamaram, isso está fora de qualquer dúvida. Mas a inveja feroz contra Lacerda veio de uma ala política aparentemente inesperada: os militares partícipes dos acontecimentos de 1964 e do regime emergido das cinzas de uma República em frangalhos. A ‘’linha-dura’’, liderada pelo marechal Costa e Silva, não via com bons olhos a eleição em 1965 e a consequente devolução do poder aos civis por compreender que a ‘’revolução’’ demandava tempo para ser consolidada. Ora, Lacerda era a maior liderança política de então e despontava como favorito para vencer a eleição presidencial. Mas a vitória da linha-dura na extensão do mandato inicialmente interino do general Castelo Branco impediu o ilustre tribuno de chegar ao seu grande objetivo. Criou a Frente Ampla – composta por antigos adversários políticos – na tentativa de reestabelecer a democracia no país, mas não obteve sucesso. Faleceu em 1977, sem ver o fim da ditadura militar e com seus direitos políticos cassados pelos homens de farda, os mesmos que o prenderam em 1968.
Além da nítida inveja dos militares com a popularidade de Lacerda, a própria classe política época compartilhava tal sentimento. É a conclusão inequívoca que se pode chegar com o livro ‘’Lacerda: A Virtude da Polêmica’’, de Lucas Berlanza. Com a palavra, o autor: ‘’[...] ainda que não fosse por desejo de Castelo, a prorrogação de seu mandato resultava em boa medida de uma manobra dos congressistas [...] para pôr freio à candidatura lacerdista à presidência, que temiam ser, ela sim, o caminho para ditadura, porque, conforme Arinos admitiu, Lacerda era competente e extraordinário orador e, portanto, se assumisse a presidência em um ‘período revolucionário’, não sairia de lá [...]’’.
Eis o traço inconfundível do nosso país: a inveja. Como diria Tom Jobim, no Brasil o sucesso é uma ofensa pessoal. Até mesmo os indivíduos com carreiras estabelecidas e situações pecuniárias vantajosas invejam os que são superiores. A superioridade no intelecto e de espírito é a maior e mais valiosa, por isso mesmo a inveja a tais predicados é a mais enragé possível. Como tantos outros, José Bonifácio e Carlos Lacerda foram vítimas de tal fúria típica dos medíocres.